Eric Gil Dantas, economista do Ibeps
Lula assume o país em um contexto delicado do ponto de vista econômico. Apesar da melhora no desemprego e na renda no final do ano passado, a situação não deve continuar a progredir, uma vez que o crescimento econômico se deu com uma base comparativa fraca do ano de 2021, e que parte dele veio da enxurrada de dinheiro público e isenções tributárias irresponsáveis, a fim de garantir a reeleição de Bolsonaro. Além disto, os altos juros e a crise econômica internacional que se avizinha aumentam os desafios da política econômica do governo. A Cepal projeta um crescimento de apenas 1,2% para a América Latina neste ano, e 0,9% para o Brasil. Praticamente uma estagnação econômica.
Neste contexto, os desafios para fazer com que os brasileiros voltem a ter dignidade serão enormes, mas sabemos que o cabresto que o mercado tenta impor a qualquer indivíduo que sente na cadeira presidencial também é.
Ao longo de dois textos irei tratar de dez pontos econômicos que deverão estar no debate público no início do governo do Lula. Neste primeiro tratarei sobre salário-mínimo, reforma tributária, novo arcabouço fiscal e taxa de juros. Em um segundo texto tratarei sobre Petrobras, bancos públicos, trabalhadores de aplicativos, reindustrialização, OCDE/Mercosul e o pacote de ajuste fiscal do Fernando Haddad.
Salário-mínimo
A valorização do salário-mínimo é uma das principais promessas de campanha do Lula. Ao longo dos governos petistas, esta foi uma das políticas que mais impactaram na redução da pobreza. Segundo as economistas Alessandra Scalioni Brito e Celia Lessa Kerstenetzky, em artigo publicado na revista da Associação Nacional dos Centros de Pós-Graduação em Economia (Anpec), a valorização do salário-mínimo contribuiu com cerca de 40% na diminuição da pobreza no país medida entre 2002 e 2013.
Sob o governo Bolsonaro, o único reajuste do salário-mínimo acima da inflação até então havia sido em 2019 – ou seja, aprovado antes do ex-presidente assumir o cargo. Isto foi um fator relevante para o aumento da desigualdade nos últimos anos.
Lula deu declarações de que reestabelecerá a política de reajuste a partir do crescimento do PIB, conforme foi feito entre os anos de 2007 e 2018 – e chegou a constar em lei de 2011 a 2018. A regra dizia que o reajuste do salário-mínimo ocorreria a partir do INPC do ano anterior mais a variação (apenas caso o número seja positivo) do PIB de dois anos atrás.
Mas o que vimos agora foi apenas a manutenção do reajuste dado por Bolsonaro, um aumento real de R$ 18, ou 1,5%. Sindicatos reivindicavam que o reajuste deveria ser um pouco maior, entre R$ 1.320 e R$ 1.343, ao invés do valor de fato estabelecido, de R$ 1.302. O aumento acima do valor já estabelecido por Bolsonaro seria importante por dois motivos, um econômico e o outro político. Em termos econômicos, seria garantir logo a retomada do poder de compra acima da inflação. De 2019 até agora, a inflação de alimentos já acumula 50%, por exemplo. Isto mostra que o problema da inflação é maior do que parece.
Já do ponto de vista político, tomo emprestado o argumento utilizado pelo Henrique Canary[1]: “A oposição bolsonarista já está fazendo a festa com a situação, dizendo que essa é a primeira promessa não cumprida de Lula e comparando os R$ 18 com o aumento de juízes e políticos. Claro que se trata de uma enorme hipocrisia. Os bolsonaristas ficaram calados quando a inflação de alimentos e combustíveis estava destruindo a olhos vistos o valor real do salário-mínimo e agora tentam se passar por bonzinhos. Ainda assim, é preciso ter cuidado porque esse tipo de discurso pode muito bem pegar num setor de massa e desmoralizar o governo perante aqueles que mais necessitam de medidas de combate à pobreza. Ninguém precisa da corrosão da base de sustentação do governo, muito menos agora”.
Reforma tributária
Hoje existem dois blocos de reformas tributárias. O primeiro é da reforma dos impostos sobre consumo. É basicamente a unificação dos vários tributos municipais, estaduais e federais, em um ou dois tributos, a depender da proposta. O segundo é a reforma sobre a tributação da renda, segundo Haddad, para “desonerar as camadas mais pobres do imposto e para onerar quem não paga imposto”, mexendo principalmente nas alíquotas de imposto de renda e retomando a cobrança de imposto sobre dividendos.
A prioridade do Haddad está sendo, sem dúvidas, a primeira reforma, pois é a que o empresariado mais almeja. Tanto que o ministro a prometeu já para o primeiro semestre. Esta reforma tem como diagnóstico que o problema tributário no Brasil é que o sistema é complexo, gerando perdas para o empresariado. Para sermos justos, as duas PECs que estão em tramitação preveem alguma devolução de impostos sobre consumo para pessoas de baixa renda. Na justificativa da PEC 45/2019, por exemplo, está escrito que: “Isto não significa que o modelo não deva contemplar medidas que mitiguem o efeito regressivo da tributação do consumo. Para tanto, propõe-se um modelo em que grande parte do imposto pago pelas famílias mais pobres seja devolvido através de mecanismos de transferência de renda” (p. 31). Mas a proposta não estabelece a priori como seria este mecanismo, deixando isso para uma lei complementar. Claramente é algo secundário nesta reforma, e corre risco cair em meio ao processo de votação.
A segunda reforma tem como promessa ser encaminhada no 2º semestre. Deverá contemplar, por exemplo, a mudança no IR. Lula vem prometendo que quem ganha até R$ 5 mil não pagará o imposto, aumentando as alíquotas acima disto para compensar. Além disso, também prometeu a tributação de dividendos, o que ajudaria a compensar a mudança do IR. Ainda não está claro se também haverá mudanças em impostos sobre riqueza, como impostos sobre heranças, grandes fortunas ou de patrimônio em geral. É possível que isto fique de fora.
O maior problema aqui parece ser o peso que se dá a cada uma das reformas, fruto do diagnóstico do que seria mais urgente a ser resolvido. O sistema tributário no Brasil é regressivo, fazendo com que os mais pobres paguem proporcionalmente à sua renda mais tributos do que os ricos. Isto se dá principalmente por três motivos: (i) tributa-se mais o consumo do que a renda e a riqueza, ao contrário de grande parte do mundo; (ii) as alíquotas de IR no Brasil são baixas, atualmente a maior faixa está em R$ 4.664,68, praticamente colocando no mesmo balaio um operário qualificado e um juiz federal; e (iii) não se tributa dividendos, principal fonte de renda dos empresários. E esta deveria ser a prioridade zero em um país onde a desigualdade social já é tão grande. A reforma do imposto sobre o consumo (a primeira) pode muito bem ser aprovada sem a ferramenta de “devolução” do imposto pago pelos mais pobres, pois não é o objetivo central da PEC. Se isso acontecer, os ricos terão finalizado a reforma tributária que querem, e tentarão colocar uma pedra em cima de qualquer outra proposta, encerrando a discussão e mantendo o sistema tributário brasileiro como um dos mais injustos do mundo.
Novo arcabouço fiscal
A discussão sobre um novo arcabouço fiscal preocupa. O governo parece ter incorporado o discurso de que o teto de gastos teria que ser “substituído” por alguma outra regra que disciplinasse os gastos do governo. Como o cientista político Felipe Calabrez escreveu em artigo de um ano atrás, no Estadão: “Ao contrário do que os comentaristas de telejornal fazem parecer, a ausência dessa regra não deixaria o país sem algum balizador fiscal. A EC-95 atualmente coexiste com pelos menos outras duas regras fiscais. A chamada Regra de Ouro, estabelecida pela Constituição em seu artigo 167, veda a realização de operações de crédito em montante que exceda as despesas de capital. A ideia desta regra é vetar a emissão de dívida pública para cobrir despesas correntes, permitindo apenas para investimento. Outra regra em vigor no atual e confuso regime fiscal brasileiro é a meta do resultado primário da União, que, de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), deve constar na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para cada exercício financeiro. A ideia aqui é prever os resultados primários do setor público, que é a diferença entre receitas e despesas não financeiras, e que, em caso de superávit, deve ser destinado ao abatimento da dívida pública, garantindo sua sustentabilidade intertemporal”[2]. Isto é, o Executivo federal já tinha e continua tendo constrangimentos em relação às contas públicas. O teto de gastos veio para ser unicamente uma ferramenta de chantagem por parte do mercado e do centrão, tão ineficiente em termos fiscais quanto dispensável.
É muito mais razoável a sua mera exclusão do que a negociação para colocar outra camisa de força nos gastos sociais, real objetivo de iniciativas como essa.
Taxa de juros
Outro problema a ser enfrentado é a altíssima taxa de juros do país. Como resposta a uma inflação que nada tinha a ver com aumento da demanda, o Banco Central subiu drasticamente a taxa básica de juros (SELIC), obviamente sem sucesso. Com uma SELIC a 13,75%, a maior desde 2016, o governo já aumentou em 45% o total de despesas com juros da dívida, e isso não “resolveu” o problema da inflação, causada, principalmente pelo PPI e aumento de outros preços internacionais, enquanto o câmbio se deteriorava (perdeu um terço do seu valor sob a gestão de Paulo Guedes). Mas com o aumento da SELIC, cada vez mais dinheiro público é jorrado para as mãos dos detentores da dívida, o que agrava ainda mais o cenário fiscal e desaquece a economia (quanto maior os juros, menor é a atividade econômica).
Isto é um problema que acompanha o país há muito tempo. O próprio PT manteve uma taxa de juros altíssima, em 13%, se considerarmos a média global dos seus três mandatos e meio. Isto deve ser enfrentado, o Brasil há muito tempo figura entre as maiores taxas reais de juros do mundo, o que provoca uma enorme transferência de dinheiro dos brasileiros (via governo, empresas e pessoas físicas) para bancos.
Mas mantendo a autonomia do BC, legislação criticada acertadamente por Lula há alguns dias, é muito pouco provável que haja algum enfrentamento a esse problema. Com autonomia em relação ao governo (ou melhor, submissão ao mercado), o BC terá um papel contracíclico ativo, empurrando para baixo a economia para “conter” a inflação acima da meta.
Foto: World Economic Forum/Sandra Blaser – Fotos Públicas