Só uma multidão de Antígonas pode enfrentar a banalização da morte

Este ano, “A Metamorfose”, obra-prima de Franz Kafka  completa 100 anos. De muitas formas, o grotesco enredo do escritor tcheco nos ajuda a pensar na angústia vivida pelos colegas e familiares, que, após dois dias, no dia (2/2)  receberam a terrível notícia:  o  operador Luis Augusto Cabral de Moraes, de 55 anos, desaparecido desde o dia 31/1, foi encontrado morto. Ele caiu por um buraco que se abriu sob seus pés, em um tanque de asfaltado (a 75 graus), na REDUC. Mas é com o  também tcheco, Karel Kosic e seu texto “O século de Grete Samsa” que cruzaremos nosso diálogo. Para este filósofo, o personagem central de “A metamorfose”, não é Gregor Samsa, aquele que, após uma noite de sonhos inquietantes acorda transformado em um “gigantesco inseto”. A personagem principal, diz Kosik, é Grete Samsa, a irmã de Gregor. É nela que acontece a verdadeira metamorfose, quando, depois de cuidar do irmão transformado, já perto do final do texto, consuma a verdadeira mudança trágica da obra, no instante em que deixa de ver o humano no irmão, no seu companheiro e exige que a família se livre dele.

Nossa pergunta fundamental é: quem se opõe a Grete Samsa? quem é o contraponto aos que desumanizam os vivos e não se importam com os mortos? aos que, atualizando a reflexão, não se preocuparam, por exemplo, com os dias de tortura vividos pela família, amigos e companheiros de trabalho de Luis Cabral? Não se importam também com a dor da família de outro petroleiro morto, no dia 22 de fevereiro de 2015, Rodrigo Antônio de Oliveira? para Kosik, quem se opõem a Grete Samsa é Antígona. E por que? Porque, para Kosik, Antígona é o poderoso contrário à frieza de Grete, a sua insensibilidade perversa.

Os que conhecem a peça de Sófocles sabem que a relação incestuosa entre Édipo e Jocasta gerou 4 filhos: Etéocles, Polinices, Antígona e Ismênia. Os dois primeiros se batem pelo governo de Tebas e uma mata o outro. Creonte, o novo rei, manda enterrar apenas seu aliado Etéocles e ordena que o corpo de Polinice não seja sepultado e, sequer lamentado. Ao contrário da irmã Ismênia, que se assume frágil e sem forças para enfrentar a ordem, Antígona insiste em enterrar o irmão morto e, para isso, desafia a repressão, a violência e a punição do Estado. Kosik vê em Grete Samsa uma anti-Antígona. Para a primeira, a paz familiar, superficial e social precisa ser restaurada através da eliminação do irmão que, desumanizado e não servindo mais à família, passa a ser um estorvo, um inseto paralisado. Para a segunda, nenhuma paz é permitida até que o irmão seja honrado.

Tentando entender as dimensões do “trágico” no século XX, chamado por ele de “século de Grete Samsa”, Kosik considera que uma das impossibilidades do trágico está na banalização e domesticação da morte. A morte, diz ele, perdeu o poder que tinha de abalar profundamente os seres humanos e é digerida com certa rapidez no dia-a-dia. A morte do outro não ameaça nos desestruturar, ela é cotidiana e pouco significativa. “Ela nos chega no meio de múltiplas imagens, sucessivas informações e sensações confusas; em seguida, desaparece, sem deixar traços”. A morte de um petroleiro é indiferente aos que dirigem a empresa e  sugerem, como foi ventilado recentemente, por um executivo próximo à estatal, juntar tudo (COMPERJ, REDUC, REGAP) e vender, simples assim. Mas nós não concordamos. Havia marcas de mãos no teto do tanque corroído pelo descaso, pela negligência de uma empresa gigante como a Petrobrás. Cabral, tentou, em vão, se segurar. Foram narrativas contadas durante o protesto realizado na porta da REDUC e também durante seu enterro, no dia 4/2, por companheiros horrorizados. Rodrigo Antônio, petroleiro da Termoelétrica Barbosa Lima Sobrinho, com mais de 60% do corpo queimado, não teve ambulância que o levasse ao hospital e morreu, no dia 22 de fevereiro de 2015.

Para nós, mortes como essas, do companheiro Cabral, de Rodrigo Antônio e de tantos outros que morreram pela irresponsabilidade das direções da Petrobrás,  sempre  nos desestruturarão, sempre nos afetarão. Kosik, o filósofo tcheco, está à cata de uma Antígona moderna, corajosa o suficiente para sustentar convicções que enfrentem os oportunistas que cedem ao medo e se calam. A Antígona moderna se insurge não só contra o moderno Creonte (o Estado, o governo, suas empresas, sua ganância, sua negligência, sua violência, poderíamos dizer), mas contra “toda forma de mal”.
A  Antígona moderna não é um indivíduo isolado e seu melhor exemplo não virá da literatura ou da dramaturgia. Ela não se conforma com a morte do outro. Não aceita o corpo do outro morto. E, se o outro está morto, ela deseja encontrar seu corpo, procurar seu corpo em um tanque profundo, escuro, sujo, com resíduos semelhantes ao asfalto e esvaziar o tanque até que o corpo de nosso companheiro, ou o que restou desse corpo fosse encontrado e achá-lo  e enterrá-lo dignamente e  cobrar por sua morte. “Para podermos nos despedir”, como disse Cláudia (ou Antígona?), a irmã, de Cabral durante seu velório. Ela não permite o apagamento da memória e não permitiremos.

A Antígona moderna, oposta a indiferente Grete, enfrenta o Estado, o governo, sua fome de lucro e sua violência bestial. O século XX não foi e nem o século XXI  será um século de Grete Samsa. Não pode ser! Este é o século de uma multidão de Antígonas, de irmãs solidárias e irmãos solidários, nas ruas que exigem segurança no trabalho, exigem dignidade, direitos e justiça. Esse é o nosso século de lutadores e lutadoras. Luis Augusto Cabral de Moraes, Rodrigo Antônio de Oliveira:  presentes!

 

(Imprensa – FNP)

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