Reforma do ensino médio restringe acesso de estudantes ao conhecimento

Para protestar contra a reforma do ensino médio, estudantes de escolas públicas se reuniram em São Paulo, na quinta (30), na Avenida Paulista. Além de reivindicarem mais investimentos na educação e valorização dos profissionais, eles questionaram a legitimidade do governo federal e afirmaram que não foram ouvidos durante a aprovação da medida. 

A reforma do ensino médio, a Lei 13.415, foi sancionada por Michel Temer em fevereiro de 2017, após passar por aprovação do Congresso. No entanto, a proposta tramitou como Medida Provisória (MP), sendo transformada em lei posteriormente. Esse fato é um dos argumentos que justificam sua inconstitucionalidade, segundo advogados. 

Para eles, uma reforma importante e complexa como essa não deve ser tratada de forma acelerada, em 120 dias, como prevê uma MP. “Urgência não pode ser confundida com atropelo. Se isso acontece, na verdade se está tratando com menosprezo, com menor importância uma matéria fundamental, que é a educação. O governo foi absolutamente irresponsável”, afirmam. 

Contrarreforma 

A Lei 13.415 reestrutura o ensino médio das escolas públicas estaduais e altera modalidades articuladas ao sistema educacional brasileiro, como a profissionalização. Entre os argumentos que justificaram a medida, o governo alega que o ensino médio não é atrativo, não dialoga com a realidade dos jovens e tem taxas de evasão muito altas. 

“É necessário reformar, e profundamente, a educação básica no País, em particular a educação em ciências, mas não se pode estabelecer uma reforma para pior. É uma questão seríssima”, alertam cientistas brasileiros.

A BNCC (instrumento de aplicação da reforma do ensino médio, homologada em dezembro de 2017 pelo Ministério da Educação) do Ensino Médio apresenta as diretrizes relativas a 60% de toda a carga horária prevista pela Reforma e estabelece como obrigatórios apenas os componentes Português e Matemática.

Disciplinas como História, Geografia, Química, Física, Filosofia e Artes aparecem agrupadas em “áreas do conhecimento”, como Linguagens e suas Tecnologias; Matemática e suas Tecnologias; Ciências da Natureza e suas Tecnologias; e Ciências Humanas e Sociais Aplicadas.

E para os demais 40% da carga horária, o texto estabelece de forma genérica itinerários formativos, mas não os conteúdos e práticas. Um ponto importante, e que pode gerar uma exclusão muito grande, é que as escolas não são obrigadas a oferecer todos os itinerários formativos.

Segundo o conselheiro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e professor da UFMG, Eduardo Mortimer, a proposta da BNCC, que está no CNE, esconde debaixo do tapete o grande problema da falta de professores no ensino médio, principalmente nas áreas de física e química.

“Uma vez que as escolas não são mais obrigadas a oferecer todos os itinerários, elas poderão simplesmente optar por não oferecer, por exemplo, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, o que ‘resolve’ o problema da falta de professores nessa área”, comenta.

“A Reforma do Ensino Médio é excludente porque não obriga a escola a oferecer todos os percursos formativos. Isso é uma tragédia. A BNCC precisa ser reformulada, com ampla discussão”, defendeu.

Outro problema que ele aponta é que quando se solapa disciplinas de uma base, torna-se impraticável criar interdisciplinaridade sem que haja conhecimentos disciplinares.

Na opinião do professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais Lucas Barbosa Pelissari, o governo aponta para uma saída conservadora que tende para o aumento da desigualdade social. “O ensino médio é um nó porque sintetiza contradições da sociedade brasileira. Existe um ensino para a classe trabalhadora e um outro para os filhos da burguesia e das classes médias, que são aqueles que vão se preparar para o ensino superior”, aponta.

O que muda com a reforma do ensino médio:

– O currículo será definido pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC);

– Somente matemática e linguagens serão disciplinas obrigatórias;

– As outras disciplinas serão ofertadas dentro dos itinerários formativos, que as escolas podem ofertar ou não. Um dos itinerários é a formação profissional;

– Estabelece escolas em tempo integral

Entidades científicas se manifestam

As entidades científicas defendem que tanto a Lei quanto a BNCC, a ela ligada, pode limitar muito os direitos de aprendizagem dos jovens, em particular na área das ciências, e o dever do Estado de educar, aprofundando, dessa forma, ainda mais, as desigualdades sociais no País.

A Associação Nacional de História (ANPUH) também já produziu uma série de documentos criticando a BNCC do Ensino Médio e a Reforma desse ciclo, conforme ressaltou a representante da entidade na reunião, Lana Lima. Uma das críticas recai sobre o desaparecimento da disciplina de história na BNCC. “Não nos sentimos contemplados com essa versão da BNCC. Como uma disciplina fundamental para formação do cidadão fica de fora? A questão fundamental a ser debatida é quem é que queremos formar como futuro cidadão desse país? O que essa Base propõe é a formação de uma mão de obra pouco crítica e destinada a trabalhos mais simples, vinculados a interesses de empresas”, argumentou.

Conforme apontou Maria Eunice Marcondes, da Sociedade Brasileira de Química (SBQ), a ênfase dada à Língua Portuguesa e à Matemática esvazia os conteúdos das demais disciplinas nas áreas das ciências da natureza e das ciências sociais. “Isso impede o aluno de ter uma visão ampla de mundo e construir um pensamento crítico”, disse, criticando também a pouca participação da comunidade nas discussões sobre a BNCC do Ensino Médio.

Hernandes Carvalho, da Federação de Sociedades de Biologia Experimental (FeSBE), acrescentou que os dois componentes obrigatórios, sozinhos, não permitem ao indivíduo uma compreensão sobre si mesmo e sua função na sociedade. “Falar sobre evolução das espécies depende de questões de sexo, de herança, do ser humano inserido na natureza”, defendeu.

Para o representante da Sociedade Brasileira de Geologia, Umberto Cordani, ao ignorar as geociências, a educação formal deixa de fora todo sistema Terra. “Grande parte dos problemas ambientais são geológicos. Fora do Brasil, essas questões são consideradas muito importantes para a Educação”, ressaltou.

A Sociedade Brasileira de Astronomia (SAB), cujo presidente Reinaldo de Carvalho, não pode estar presente, encaminhou, por intermédio da SBPC, um documento com comentários críticos sobre a BNCC e a Reforma do Ensino Médio ao presidente do CNE.

Apesar de figurar como obrigatória, a visão da matemática nessa versão da BNCC é um problema grave, segundo o representante da Sociedade Brasileira de Educação Matemática (SBEM), Vinícius de Macedo Santos. “Não nos conforta que a matemática seja parte do percurso obrigatório. Queremos uma Base que pense na formação de jovens. Isso faz parte da construção de um País. É pífia e medíocre a posição da BNCC sobre a área de matemática. Essa visão aplicacionista é um problema sério e danoso. Temos que nos perguntar a que serve tudo isso”.

Claudia Galian, representando a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), disse que para a entidade a BNCC atenta contra direitos constitucionais, pois fragiliza o ensino de várias disciplinas e empobrece o currículo com relação ao aprendizado escolar e ressaltou que o processo que levou à elaboração da Base foi nebuloso e pouco participativo, ignorou saberes da escola, dos professores e tomou o desempenho dos alunos nas grandes avaliações com única premissa. “A escolha de itinerários formativos ser dependente da oferta nas escolas é quase um deboche”, criticou.

 

Fonte: Brasil de Fato e Jornal da Ciência.

 

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