O governo federal anunciou, no seu segundo mês de gestão, a PEC 06/19, proposta sobre o que é hoje a agenda central do capital financeiro no mundo inteiro: a contrarreforma da Previdência. Em linhas gerais, a proposta se estrutura em três eixos: uma chamada “regra de transição”, a qual afeta o conjunto dos trabalhadores e trabalhadoras que possuem vínculo com algum regime previdenciário, inclusive os já aposentados; a generalização da capitalização para todos os futuros trabalhadores; e, por fim, a retirada da Previdência da Constituição.
Basicamente, tudo que a “reforma” poderia fazer para dificultar mais a vida do cidadão e da cidadã, sobretudo aquele mais pobre, ela faz. Aumenta a idade para aposentadoria, aumenta o tempo de contribuição necessária para 40 anos e reduz a possibilidade de acúmulo de benefícios.
É importante assinalar que a atual PEC em debate é só o início da contrarreforma. Ela torna constitucional a regulamentação da Previdência por leis complementares – tanto do regime geral, dos trabalhadores vinculados ao Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), como dos regimes próprios dos trabalhadores do setor público -, facilitando que os governos possam permanentemente alterar a Previdência sem a necessidade de maioria qualificada nas votações legislativas. O reajuste automático dos benefícios também deixa de ser uma prerrogativa constitucional, o que poderá no futuro defasar até o mínimo seus valores reais.
Assim, as chamadas regras de transição têm como horizonte o aumento de alíquotas e a redução de direitos. Nos regimes próprios, a proposta é aumentar de forma escalonada as alíquotas por faixa salarial e permitir contribuições extraordinárias no caso de supostos déficits, inclusive de aposentados e pensionistas. Não trata, no entanto, da securitização das fontes previdenciárias dos estados, como no caso dos royalties do petróleo no Rio de Janeiro que, entregues ao mercado financeiro em um paraíso fiscal, já geraram com o pagamento de juros um rombo de 18 bilhões no fundo previdenciário público.
Outra mudança com maior potencial de impacto envolve o custo previdenciário que recai sobre a folha de pagamento — e soma cerca de 30% do custo da mão de obra. Pelo texto da "reforma" de Jair Bolsonaro (PSL) que está no Congresso, trabalhadores poderão escolher se vão contribuir pelo atual regime de Previdência — de repartição, em que as pessoas na ativa sustentam o benefício dos aposentados — ou por um novo modelo de capitalização, no qual cada trabalhador faz sua própria poupança.
O chefe da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho, Rogério Marinho (PSDB-RN), já indicou que o governo estuda ainda atrelar o sistema de capitalização a uma nova modalidade de contrato, a carteira verde e amarela.
Especialistas apontam que, na prática, a opção por uma carteira e seu respectivo regime previdenciário será menos do trabalhador e mais da empresa. Sem um controle, a tendência é a nova carteira se tornar a realidade.
Para especialistas, não existe negociação com uma pessoa em inferioridade técnica, econômica e jurídica. Se deixar o mercado regular, vamos ver o domínio do mais forte.
A “reforma” ainda vem com mais uma de suas sacadas: as mulheres. Nas últimas décadas se multiplicou o número de famílias chefiadas por mulheres que moram sozinhas com seus filhos, bem como a participação das mulheres no mercado de trabalho. As desigualdades estruturais de gênero, fruto de uma cultura patriarcal, entretanto, fazem com que as tarefas domésticas continuem sendo realizadas por mulheres.
Uma mulher empregada trabalha mais horas em casa do que um homem desempregado, no total uma média de 18,1 por semana. Ao mesmo tempo, as mulheres ganham em média 22% menos que os homens, situação que se agrava no caso das mulheres negras, que recebem 63% menos que homens brancos da mesma faixa etária e com o mesmo grau de escolaridade.
Apesar dessas condições extremamente desiguais de trabalho, discute-se hoje no Brasil se idades de aposentadoria diferentes para homens e mulheres são justas. Apesar de manter uma diferença de idade entre homens e mulheres a PEC não alterou a idade mínima para aposentadoria dos homens, mas aumentou de 60 para 62 anos a aposentadoria por idade para as mulheres.
No entanto, talvez o maior tapa na cara da população pobre seja a redução do auxílio a quem não contribuiu com a Previdência de um salário mínimo para R$ 400, entre 60 e 70 anos e estabelecer, para além da renda de menos de um quarto do salário mínimo, o critério de limitação de patrimônio a 98 mil reais.
Ou seja, é possível que a posse de uma moradia em condições precárias nas grandes cidades ou mesmo um terreno cultivado para sua subsistência na região rural impeça o recebimento mesmo dos parcos 400 reais. Pensando ainda na diferença entre homens e mulheres, 58% do total de idosos usuários do BPC são mulheres, que serão impactadas por essas novas regras propostas.
E as milhões de pessoas na informalidade? O que a “reforma” tem para elas? Seguindo a lógica, as consequências para esse enorme segmento da população serão cruéis, inclusive porque vários segmentos da população empreendem por necessidade, já que estão expostas às diversas opressões estruturais.
Por outro lado, os militares podem ficar tranquilos, não estão nesse bolo! As medidas são voltadas só à raspa do tacho, que vai experimentar essa beleza de medida para o país, isto é, policiais militares, policiais civis e bombeiros, turma formada por muitos – não todos, claro – fazedores de arminha com a mão e fãs do “mito”.
Agora, no país dele, além de ganharem “ótimos salários”, poderão viver mais essa maravilha em nome do capitão, com seus direitos previdenciários muito bem protegidos.
A verdade é que a maioria do país pagará o preço, bolsominions ou não. E o pior: esta é uma Reforma da Previdência sem um projeto de nação. Ataca-se a Previdência ao mesmo tempo em que há o aumento de desemprego no país, seja pela precarização da massa de trabalhadores afetada pelo golpe, reforma trabalhista e afins; seja pela substituição da mão de obra por tecnologia.
Vale aqui dizer que a Reforma da Previdência jamais seria possível sem uma campanha incessante de inverdades, análises rasas e sonegação do ponto de vista diferente. Não se diz que ela não é deficitária, como tanto se alega, não se problematiza outros gastos do governo brasileiro, como a fatia de quase 40% a juros e amortização de dívida que persiste desde o período colonial, e finge-se que pessoas de muito gabarito com esse posicionamento simplesmente não existem.
Mas deve ser uma boa “reforma”, né? Afinal, o presidente do Itaú, Santander e outros bancos estão elogiando nos jornais. Ora essa, como pode ser ruim? Nesse sentido, a falta de comprometimento com uma República de bem-estar social é algo que me choca, ainda que se parta da análise de todas essas famílias que saqueiam por aqui há gerações, desde as capitanias hereditárias.
E há ingênuos que acham que podem fazer uma análise “fria” do que está na mesa, no sentido de “ah, com esse ponto eu concordo” ou de “é, precisa de alguns reparos”, como se não fosse nítida a intenção por trás de tanta maldade: acabar com a Previdência pública para classe média, desestimular qualquer esperança de aposentadoria a milhões e matar pobres. Uma tríade do mal!
A “reforma” é um crime contra o país e não é possível que essa situação permaneça numa normalidade democrática. Muita coisa há de ser revista e com toda certeza esse saque na Previdência será uma delas.
Fonte: Boletim da FNP, março 2019.