Entre o verde e o amarelo, tons de racismo

A Copa do Mundo no Brasil tem trazido à tona diversos debates, desde àqueles circunscritos ao futebol em si, as melhores técnicas, passando pelos gastos da Copa, mobilidade urbana durante os jogos, os protestos de rua, a segurança pública, até a alta dos preços nas cidades sedes. Em menor ou maior grau, boa parte destes debates remonta às contradições sociais, econômicas e políticas próprias da historia desta terra. Por isso, em momentos como estes, é preciso registrar que estamos distante de quitar uma dívida histórica para com a população negra deste país. Diferentemente do marketing que se vende mundo afora, não estamos num país de igualdade racial. Assim, de forma objetiva, o jogo da seleção brasileira de 23/06/2014 contra Camarões, despertou a pergunta: nos estádios da Copa, onde estão os torcedores negros e negras da seleção brasileira?

Desde o primeiro jogo da seleção, lá em casa, já desconfiávamos que os altos preços dos ingressos empurrariam para os estádios torcedores brasileiros das camadas mais altas da pirâmide social a qual é composta, em sua maioria, por brancos. Após o segundo jogo, ocorrido no nordeste, ficamos mais desconfiados ainda, pois nas imagens das câmeras apareceram majoritariamente torcedores verde e amarelo de pele branca. A partir deste segundo evento, eu e minha filha de 13 anos, lançamo-nos ao desafio de observar a composição racial dos torcedores brasileiros que apareceriam na TV no terceiro jogo da seleção, realizado na região centro-oeste do país.

Neste sentido, com nosso pré-jogo definido, nos 15 minutos que antecederam a partida, fizemos uma observação sobre a cor da pele dos torcedores presentes na arquibancada conforme as imagens que apareciam na transmissão televisiva. Fizemos duas classificações sobre o tipo de imagem: uma classificada como imagem ampliada e, outra, baseada no zoom dos rostos. As imagens ampliadas são as tomadas de câmera que se preocupam em evidenciar o volume de torcedores na arquibancada e, ao mesmo tempo, as reações deles. Talvez uma imagem dessas enquadre cerca de 20 a 30 pessoas, ou mais. Assim, durante os minutos que antecederam o inicio da partida, pelas tomadas de câmeras com imagem ampliada foi possível contar cerca 15 negros (as) presentes nestas imagens, sendo 8 (oito) entre os verde e amarelo e 6 (seis) camaroneses. Pelas imagens classificadas como focalizadas, com zoom na cara das pessoas, 11 (onze) brancos contra 2 (dois) negros, sendo que durante o hino nacional apenas foram focalizados brancos da torcida brasileira, 5 (cinco) no total. Com o inicio da partida abandonamos esta observação porque o foco, às 17 horas, era outro, a emoção do jogo e a expectativa em nossa seleção. No entanto, como estávamos com a sensibilidade despertada para identificar a discrepância racial no estádio, notamos que, durante a partida, no primeiro tempo, somente brancos foram focalizados (zoom) e, no segundo tempo, constatamos um zoom em 2 (duas) torcedoras negras. A quantidade de brancos nas duas classificações era bem maior. Em seguida, expliquei para a garotinha que, pelo menos, mais da metade da população brasileira é negra ou parda (censo IBGE de 2010).

Com os dados coletados do sofá de casa, entre um petisco e outro e ao som de rojões, cornetas, gritaria da rua (afinal o Brasil estava com o melhor desempenho dentre os três jogos), desenhamos algumas hipóteses. Ou o olhar discriminatório está nos operadores das câmeras da FIFA ou, de fato, poucos negros e negras estão entre os presentes na torcida brasileira em função da elitização da Copa do Mundo. Independentemente de uma das hipóteses ou da combinação delas, não há como negar que, no Brasil, ainda persiste a discriminação racial, inclusive nos estádios da Copa. Tal situação contrasta com a composição racial dos jogadores da seleção brasileira, contrasta, ainda, com a maioria dos torcedores e frequentadores de estádios no Brasil ao longo dos diferentes campeonatos estaduais, do campeonato brasileiro, da Copa do Brasil etc. Claro, a responsabilidade por esta amostragem de racismo não é dos torcedores que estão frequentando os jogos da seleção brasileira. Uma reparação histórica só é possível com ações do Estado nas esferas política, econômica, social e cultural. A única responsabilidade destes torcedores brancos que estão nos estádios representando a torcida brasileira é a forma um tanto quanto medíocre de se comportarem e torcerem. Sobre o comportamento sugiro a leitura do texto Os vândalos nos estádios da Copa, sobre a forma de torcer é possível resumir a mediocridade à falta de criatividade ao apenas entoarem o canto ?eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor?. Incansavelmente! Qualquer grupo de 500 a 1000 torcedores costumeiros frequentadores de estádios, por mais plural que sejam seus times nacionais, saberia criar e inovar com outros cantos.

A elitização da Copa do Mundo trouxe à vista a exclusão racial que ainda persiste no país. O trágico desta epopéia é que a tradição popular das arquibancadas nos estádios de futebol se perdeu para um glamour esbranquiçado relativamente estranho à maioria dos torcedores da seleção brasileira.

Por fim, para a crítica não ficar no vazio, sugerimos que, nos próximos jogos da nossa seleção, o censo que fizemos do sofá de casa seja feito por todos. É possível ensinar às crianças que por baixo da camuflagem verde e amarela e para além do orgulho de ser brasileiro, nem todos são iguais.

José Eduardo Galvão, petroleiro, formado em Ciências Sociais pela Unicamp
Santos, 25/06/2014

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